Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva:
Marcos Legais e Referências Conceituais
Lorena Resende Carvalho
(...) acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente
humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das
quais, efetivamente, e, muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de
vida.
E. Goffman
A contemporaneidade busca inaugurar relações sociais cada vez mais
amparadas por um princípio inerente ao ser humano: a dignidade. De fato, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em cumprimento à tarefa de
anunciar a paz num mundo que, na ocasião, se reerguia em meio aos fragmentos da
guerra, reconheceu a dignidade humana como fundamento da liberdade, da justiça
e da paz, e, inspirada nesse valor, concebeu que todas as pessoas, sem nenhum
tipo de distinção, tenham direito à vida.
Isso, à primeira vista, nos parece óbvio. Mas a evidência se
retira no instante em que mergulhamos na ideia de “vida”. Com certeza, esse não
é um conceito que pode ser captado exclusivamente pelos receptores da ciência
biológica. Isto é, como explica Moraes (2004, p. 24), apesar de sermos “(...)
seres biológicos que se realizam através de uma materialidade física, (...)
estamos inseridos em um meio sociocultural e político; portanto, enquanto seres
vivos, somos multidimensionais, compostos pelas dimensões físicas, biológicas,
psicossociais, culturais, espirituais e cósmicas”. Assim, se nos apropriamos de
um conceito mais abrangente de vida, entendemos que estar vivo é mais do que
ter um coração pulsante.
O conceito de vida envolve, no mínimo, as ideias de interação,
movimento, atividade e trabalho, sendo as últimas, inclusive, categorias
importantes da concepção sócio-histórica16 . O próprio Marx enfatiza: “ele [o homem] põe em movimento as
forças naturais pertencentes à sua corporalidade: braços, pernas, cabeça e mão,
a fim de sua própria vida” (1988, p. 148). E, em complemento ao conceito, é
dele mesmo a ideia de que a atuação do homem sobre a natureza externa, por meio
do movimento, lhe permite modificá-la e ao modificá-la, modificar a si próprio.
Podemos dizer, então, que o movimento é uma manifestação de vida,
e que a partir dele, do movimento, aprendemos, desenvolvemos, ensinamos e
fazemos desenvolver e, por consequência, vivemos.
Diante dessa reflexão lacônica, o que podemos pensar das pessoas
que, em decorrência de diferenças de ordem intelectual, física ou sensorial,
são discriminadas a ponto de não terem reconhecidos seus direitos básicos?
Desde o direito de ir e vir, ao direito à educação e ao trabalho. O não
exercício destes direitos, em última análise, dificulta ou mesmo inviabiliza as
oportunidades do movimento, da atividade e da ação que resulta em vida (ou é a
própria vida!). Em consequência, as inter-relações são precárias e, quando
existem, têm, como pano de fundo, conceitos rotineiros, os quais não conseguem
“despertar” potenciais cognitivos latentes.
Contraditoriamente, a idéia de incapacidade, insuficiência ou
impedimentos tem sido tão presentes na história das pessoas com deficiência
que, como resultado, a sociedade retirou de seus caminhos os desafios, cuja
superação poderia resultar em desenvolvimento. Ocorre que o pensamento
alinhavado em preceitos aprioristas, conduziu a práticas excludentes, partindo
do princípio de que, devido à deficiência apresentada, algumas pessoas não
poderiam responder a apelos ou estímulos sociais complexos, devendo lidar
apenas com demandas simplificadas, palpáveis, concretas. Essa ideia realmente
retardou o processo de inclusão educacional e social.
Mas, tais pensamentos e as práticas excludentes não são órfãos.
Não só emergiram das ciências, como também de alguns dispositivos legais. Para
se ter uma ideia, o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Nº
4.024, de 20 de Dezembro de 1961, estabelecia no seu Artigo 30:
Não poderá exercer função pública, nem ocupar emprego em sociedade
de economia mista ou empresa concessionária de serviço público o pai de família
ou responsável por criança em idade escolar sem fazer prova de matrícula desta,
em estabelecimento de ensino, ou de que lhe está sendo ministrada educação no
lar
Parágrafo único. Constituem
casos de isenção, além de outros previstos em lei:
a) comprovado estado de pobreza do pai ou responsável;
b) insuficiência de escolas;
c) matrícula encerrada;
d) doença ou anomalia grave da criança.
Trazendo para as análises que ora nos propomos, em outras
palavras, o texto legal mostra que se uma criança apresentasse algum tipo de
anomalia17
grave, não precisaria ser matriculada na escola, o
que em detrimento da época (não tão remota assim!) expressa um pensamento
marcadamente discriminatório e preconceituoso.
Contudo, se tal pensamento, de alguma forma se evidencia ainda nos
anos 60, é porque tem realmente raízes profundas. Durante muito tempo, por
exemplo, acreditou-se que “quanto mais volumoso o cérebro, maior a
inteligência” e também que a inteligência mensurada (Q.I.) é herdada
geneticamente, o que dá margem à ideia de que, por ser biologicamente
determinada, a inteligência é resistente a intervenções educacionais (Kassar,
1999). O resultado disso é que os estudos da área, aos olhos das ciências
naturais, conduziram à construção de um modelo de deficiência, no qual as
pessoas, com algum tipo de deficit, precisariam ser tratadas, “normalizadas”,
transformadas, a fim de se inserirem na sociedade. Só mais adiante tal ponto de
vista será desconstruído.
Além destes equívocos conceituais, é importante destacar que
termos como inválido, defeituoso, excepcional, surdo-mudo, idiota,
mongolóide, retardado mental e outros, tanto foram as expressões das “más concepções”
quanto cumpriram o papel de reforçá-las, contribuindo para uma ideia de
imutabilidade, o que, por sua vez, “(...) levou à completa omissão da sociedade
em relação à organização de serviços para atender às necessidades específicas
dessa população” (MAZZOTTA, 2001, p. 16).
Contudo, os estudos avançaram e, a partir da perspectiva
sócio-histórica, passa-se à compreensão de que o desenvolvimento humano é
socialmente constituído e não mais biologicamente determinado. Já é, portanto,
de Vygotsky o entendimento de que
(...) a criança defeituosa não apresentava uma relação de harmonia
com a estrutura das formas culturais existentes. Isto era compreensível, porque
a cultura humana foi criada sob as condições de um tipo biológico mais ou menos
estável (...). (VEER & VALSINER, 1996, p.87).
Posteriormente, estes argumentos dão força para a elaboração de um
novo modelo de deficiência: o modelo social; para o qual a deficiência, na
verdade, resulta da forma como a sociedade se organiza. Isto é, as barreiras, tanto
com respeito às atitudes, como em relação ao meio físico, é que inviabilizam o
acesso e a participação das pessoas com deficit nos vários setores sociais. A
deficiência, portanto, se evidencia quando se depara com um obstáculo
intransponível, mas se a sociedade se estrutura de forma a acolher o diferente,
ele deixa de ser visto como incapaz.
Estes argumentos vão, aos poucos, recebendo muitas matizes, sendo
o ápice dessas construções a Declaração de Salamanca, realizada na Espanha em
1994. A partir desse evento, muitos conceitos são ressignificados, dentre os
quais a ideia de que a pessoa com deficiência não é marcada pelo deficit, mas
apresenta uma série de atributos que podem pesar favoravelmente para uma
aprendizagem significativa (BEYER, 2006). Além disso, e em decorrência desse
pensamento, algumas mudanças em termos práticos começam a ocorrer no meio
educacional; desde o encaminhamento de alunos com deficiência das escolas
especiais para as escolas da rede comum, até a viabilização de recursos e
serviços especializados para seu atendimento.
Nessa mesma linha, outro marco legal decisivo para a história das
pessoas com deficiência, foi a Convenção da Guatemala, em 1999, promulgada no
Brasil pelo Decreto nº 3.956/2001, o qual, entre outros, definiu como
discriminação toda diferenciação ou exclusão que possa impedir ou anular o
exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas com
deficiência (Brasil, 2008).
E, ainda, para além desses e outros18 documentos legais que tratam da questão, cabe dar ênfase aos
argumentos dispostos no texto da nossa Carta Magna, que, ao estabelecer que a educação é direito de todos (Art.205), não abre espaço para
quaisquer exceções baseadas em possíveis distinções, fundamentadas em
diferenças relacionadas a condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais,
econômicas, linguísticas, culturais ou outras. O termo “todos” nos remete às
palavras “total”, “inteiro”, “completo”, nos permitindo concluir que o texto
faz referência à totalidade das pessoas ou a todos os seres humanos. Tanto é
assim, que em seu artigo 206, inciso I, a Constituição Federal dispõe sobre a
“igualdade de condições de acesso e permanência na escola”, como um dos
princípios para o ensino.
É nesse contexto, inclusive, que as diretrizes e bases da Lei n°
9.394/96, no que se refere à educação especial, mudam consistentemente:
esclarecem que tal modalidade de ensino deve ser oferecida às pessoas com
deficiência, preferencialmente, nas escolas da rede regular, sinalizando uma
grande mudança. Agora, não devem existir dois tipos de educação (uma especial e
uma regular). Na realidade, trata-se de uma educação, que, atualmente, recebe o
adjetivo de inclusiva, caracterizada pela oferta de serviços de apoio
especializado para atender às peculiaridades da clientela em questão. Tais serviços
são expressos, na prática, tanto na organização de currículos, métodos,
técnicas e recursos educativos voltados para a diversidade de alunos, como na
viabilização de atendimentos suplementares e complementares no contra-turno.
Uma produção do Ministério Público Federal, intitulado “O acesso
de alunos com deficiência às escolas e classes comuns da rede regular ” dá
ênfase a estas ideias:
A tendência atual é que o trabalho da Educação Especial garanta a
todos os alunos com deficiência, o acesso à escolaridade, removendo barreiras
que impedem a frequência desses alunos às classes comuns do ensino regular.
Assim sendo, a Educação Especial começa a ser entendida como modalidade que
perpassa, como complemento ou suplemento, todas as etapas e níveis de ensino.
Esse trabalho é constituído por um conjunto de recursos educacionais e de
estratégias de apoio, colocados à disposição dos alunos com deficiência,
proporcionando-lhes diferentes alternativas de atendimento, de acordo com as
necessidades de cada um (Brasil, 2004, p.11)
Se retomarmos, então, ao
conceito de vida introduzido no início do texto, já podemos dizer que, por
força da inclusão educacional, as pessoas com deficiência começam a conquistar
um espaço social, haja vista as interações que começam a estabelecer,
interações estas cada vez mais sofisticadas e, por isso mesmo, responsáveis
pelo desenvolvimento desses grupos em todas as dimensões do seu ser. Por isso,
arriscamos afirmar que, aqui, eles começam a viver (de fato). As disposições
apresentadas pelo texto da Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva, são prova disso, quando buscam garantir o
acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos com deficiência, transtornos
globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas escolas
regulares, orientando os sistemas de ensino a atuarem em resposta às
necessidades especiais, contemplando:
• Transversalidade da educação
especial, desde a educação infantil até a educação superior;
• Atendimento educacional
especializado;
• Continuidade da escolarização
nos níveis mais elevados do ensino;
• Formação de professores para o
atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a
inclusão escolar;
• Participação da família e da
comunidade;
• Acessibilidade urbanística,
arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos transportes, na comunicação
e informação; e
• Articulação intersetorial na
implementação das políticas públicas. (Brasil, 2007, p. 8).
O documento mencionado acima foi apresentado pelo MEC/SEESP em
outubro de 2007. Trata-se, portanto, de um documento recente e, sem dúvida,
representa mais um marco importante na história das pessoas com algum tipo de
deficiência, no sentido em que consolida o Atendimento Educacional
Especializado, delimitando, de forma mais assertiva, seus contornos, tanto no
âmbito conceitual, quanto nos aspectos mais práticos.
Na verdade, na história da educação formal das pessoas com algum
tipo de deficit, o Atendimento Educacional Especializado aparece como uma
resposta consideravelmente eficaz às suas necessidades, pois acolher estas
pessoas significa muito mais que abrir as portas das escola, mas, denota,
sobretudo, acesso ao currículo, às atividades de aprendizagem, aos métodos, às
técnicas, os quais, no conjunto, operam para a promoção do aprendizado e do
desenvolvimento dos alunos. Com efeito, o Atendimento Educacional Especializado
representa a chave para a abertura das referidas portas e, em última instância,
representa o caminho para uma vida plena.
REFERÊNCIAS:
BEYER, Hugo Otto. A educação inclusiva: ressignificando conceitos
e práticas da educação especial. Inclusão – Revista da Educação Especial, 2006.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2007.
JOHN-STEINER, V. & SOUBERMAN, Ellen. Posfácio – As obras de
Vygotsky. In: VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos
processo psicológicos superiores. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
KASSAR, Mônica de Carvalho Magalhães. Deficiência múltipla e
educação no Brasil
discurso e silêncio na história de sujeitos. Campinas, SP: Autores
Associados, 1999.
MARX, karl. O Capital: crítica de economia política. 3 ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1988.
MAZZOTTA, Marcos José Silveira. Educação especial no Brasil:
história e políticas públicas. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
MORAES, Maria Cândida. Sentipensar: fundamentos e estratégias para
reencantar a educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
SACCONI, L. A. Minidicionário Sacconi da Língua Portuguesa. São
Paulo: Atual, 1996.
VEER, J. & VALSINER. Vygotsky: uma síntese. São Paulo: Loyola,
2000
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