Autor – Lindomar da Silva Araujo – Instituto A Vez do Mestre – UCAM – RJ
INTRODUÇÃO
“Não podemos confiar nos valores tradicionais ou na reabilitação da realidade. Afinal de contas, pode ser que a humanidade, por intermédio de uma compulsão enigmática, esteja envolvida intimamente neste processo catastrófico e portanto esteja condenada a desaparecer. Se for esse o caso, seria muito melhor tratarmos nosso desaparecimento como uma forma de arte – exercita-lo, representa-lo, criar uma arte do desaparecimento. É melhor que a alternativa, que seria desaparecer sem deixar traços, sem sequer o espetáculo de nossa destruição” (Baudrillard, 2001:74).
As palavras do renomado Jean Baudrillard nos fazem perceber a clareza da necessidade de rever os valores humanos, que ele denomina tradicionais, e podemos identificar como valores éticos e morais, para uma (re)construção da realidade com dignidade. Cabe-nos uma reflexão sobre as relações interpessoais no ciberespaço, onde há possíveis distorções ou ausência dos valores éticos e morais, pois cada sujeito vai incorporando novas atitudes e sentimentos, mantendo, na medida do possível, sua integridade. Essa realidade simulada encontra-se cada vez mais presente em nosso cotidiano público e privado. Os valores éticos e morais são, no momento, indispensáveis no processo de interatividade, porém não garantem a esses sujeitos a alteridade, que é a relação do eu com o outro, o se colocar no lugar do outro. Quando as pessoas se dispõem a interagirem no ciberespaço, de acordo com Santos (2005:43), essas interações “são possíveis por estarem orientadas por uma percepção de alteridade. As comunidades se afirmam e são possíveis na medida em que há a percepção do eu e do outro, ou seja, a percepção da identidade e da pluralidade”. Diferente das relações face a face, na realidade concreta, onde as características físicas e parte da gama simbólica da personalidade tornam-se presente. No ambiente digital as identidades são apresentadas inicialmente através da escrita, permitindo camuflar parte dos aspectos visíveis da identidade.
“Cada grande inovação em informática abriu a possibilidade de novas relações entre homens e computadores: códigos de programação cada vez mais intuitivos, comunicação em tempo real, redes, micro, novos princípios de interfaces… É porque dizem respeito aos humanos que estas viradas na história dos artefatos informáticos nos importam” (Lévy, 1993:54).
Atualmente, cabe atentarmos às mudanças que ocorrem em relação aos valores de caráter axiológico, na era tecnológica, pois eles tendem a se transformar quando os sujeitos se inter-relacionam pelas novas tecnologias de informação e comunicação. “É a partir de convenções morais que as pessoas constroem seus conceitos fundamentais que as orientam no seu agir prático” (Goergen, 2001:41). A própria identidade, atualmente, já se apresenta mais próxima da realidade concreta no ciberespaço devido às inovações tecnológicas, como câmera digital nos mais diferentes objetos e locais, facilitando a mediação interativa. É nessa interação facilitada pela tecnologia que os valores éticos e morais estão se ressignificando nas relações que se fazem no ciberespaço, surgindo uma linha tênue no limite entre a permissão e a invasão da intimidade de cada um dos agentes da comunicação.
Ética para Ferreira (1986:733) é o juízo referente à conduta humana suscetível de qualidade do ponto de vista do bem e do mal. Seria oportuno uma reflexão sobre as relações interpessoais dentro do ambiente virtual, buscando perceber e analisar as distorções de atitudes entre as identidades virtuais, apontando as nuances dos valores éticos que sejam cabíveis nas diferentes realidades: real e cibernética. Pedro Goergen (2001:58) argumenta sobre a necessidade de resgatar os valores morais de base que formam referenciais para uma sociedade, quando diz:
“Os direitos do homem, a honestidade, a tolerância, a não violência, são valores aceitos com alto grau de consensualidade. Até poderíamos acrescentar que outros valores, antes precários, tais como o direito das minorias,os direitos da mulher, o respeito pela diferença, o respeito pelo meio ambiente e outros, vem ganhando espaço. É preciso desfazer esta imagem caricatural da sociedade na qual todos os valores teriam sido precarizados.”
A (re)construção dos valores éticos, na transformação do sujeito no mundo contemporâneo, fundamenta e possibilita uma reflexão sobre esses valores que se manifestam através da utilização dos recursos da ciência e da tecnologia na vida e na natureza, e invade os espaços mais íntimos, influenciando os destinos individuais e os rumos da sociedade. Esta tomada de consciência sobre esses valores humanos vem despertar o senso crítico e reflexivo em cada um de nós, e ainda, valorar atitudes e sentimentos com o outro. O resgate e a sedimentação dos valores éticos é que irão permitir ao sujeito, identificar a pretensa manipulação midiática, desacoplados dos verdadeiros interesses dos sujeitos e da sociedade. Se não recuperarmos a dimensão do social, fundamentando na ética possível das relações humanas, estaremos deixando o barco da vida navegando a deriva. Para Stuart Hall (2003:75):
“Quanto mais a vida se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (…) dentre as quais parece possível fazer uma escolha.”
A realidade atual nos faz acreditar na necessidade de um trabalho direcionado aos meandros das transformações dos sujeitos, pois há um constante deslocamento das identidades no mundo contemporâneo.
Para tratarmos do tema relacionado diretamente às relações humanas, seria esclarecedor abordarmos a questão da identidade do sujeito contemporâneo, porém seus valores inter-relacionais perpassam pelo autoconhecimento e pelo conhecimento do outro, uma questão de alteridade. Sendo assim, acreditamos que a temática relativa aos valores éticos no ciberespaço poderá ser mais bem compreendida.
Hoje muitos autores abordam o tema “identidade”, ressaltando que a mesma encontra-se em crise diante de seu deslocamento constante no mundo globalizado, cujos paradigmas modernos vêem sendo discutidos e revistos, gerando, nos sujeitos contemporâneos, uma instabilidade em sua sociabilidade. Para Stuart Hall (2003), esta perda de um sentido de si estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito, apresentando diferentes concepções de identidades para esclarecer esse deslocamento, são elas: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.
A identidade do sujeito no Iluminismo estava centrada no seu próprio eu, individualista, pois ele nascia e vivia sua vida sobre as condições de sua própria identidade, diferente do sujeito sociológico que passa a viver em relação com a sua cultura, onde começa a surgir uma concepção sociológica em que a identidade é formada na interação entre o eu do sujeito e a sociedade, o mundo pessoal e o público, percebendo-se uma unificação entre o indivíduo e o seu mundo cultural. O sujeito moderno se relaciona de forma amalgâmica com a sua cultura, internalizando seus valores e significados, tornando-os parte de si. A identidade, neste momento histórico, passa a se dar de forma unificada e estável.
No mundo contemporâneo, o sujeito pós-moderno vem se (trans) formando, com a fragmentação da unicidade e estabilidade própria do sujeito moderno, como cita Hall (2003:12): “O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”. Hoje, a maneira como nos inserimos nas diversas culturas, inclusive pelo advento da globalização, nos permite projetar diferentes identidades para maior e melhor interação com o meio imediato e midiático. Essas identidades deslocadas não se cristalizam e estão sempre permeando o verdadeiro eu do sujeito.
Há tempos os estudos da psicologia do desenvolvimento humano afirmam que a identidade é constituída ao longo da história do sujeito, desde o seu nascimento, e estará sempre em formação. Campos (1997:53) nos apresenta este desenvolvimento, apontando que os seres humanos diferem em seu patrimônio hereditário e nas influências do ambiente onde se desenvolvem, daí as diferenças individuais e a complexidade do comportamento humano. É na relação com o outro e com a sua cultura que é formada a subjetividade. “A identidade surge (…) de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (Hall, 2003:39).
Essa relação interpessoal, no mundo da cultura contemporânea, parte fundamental na construção da identidade, nos leva a indagar sobre o conceito de sociabilidade, que está diretamente relacionada com a nossa própria imagem, com tudo aquilo que representamos ou deixamos transparecer às pessoas, implicando em nossas características comportamentais, de habilidades e outras possibilidades de nos relacionarmos. Representa, ainda, a nossa capacidade de solucionar problemas, de negociar, de perceber os sentimentos dos outros, de saber ouvir, enfim, tudo que nos identifica, o nosso marketing pessoal.
“A sociabilidade durante o nosso século assumiu tais proporções que pode vir a ser, legitimamente, considerada fenômeno típico do nosso tempo. A dimensão privada praticamente desapareceu. Com dificuldade podemos ocultar os nossos pensamentos; mas logo que eles se transformam em ação, tornam-se propriedade dos outros e, graças à televisão, ao rádio e à imprensa, apenas em um piscar de olhos são divulgados aos quatro cantos da terra. (Mondin, 1980:161).
Zygmunt Bauman (1997:138), esclarece as diferenças entre os termos “socialização” e “sociabilidade”, onde ambos devem ser compreendidos a partir da interação com a estrutura social, porém se referem a processos distintos, onde socialização (pelo menos na sociedade moderna) visa a criar um ambiente de ação feito de escolhas passível de serem ‘desempenhadas discursivamente’, que se concentra no cálculo racional de ganhos e perdas, enquanto que sociabilidade deve ser compreendida a partir da interação com a estrutura social, e se referem a processos distintos, sendo observada uma emergência da multidão, na qual os indivíduos compartilham ações baseadas no instante em que se vive e nas condições semelhantes nas quais se encontram.
O ciberespaço é apresentado por Pierre Lévy (1999:195), como sendo um princípio co-presente a qualquer outro espaço e podem ser deslocados à velocidade da luz. A diferença entre os dois espaços não se deve apenas a propriedades físicas e topológicas, mas a qualidades de processos sociais que se opõem.
A tendência dos cibernautas em suas práticas interpessoais no ciberespaço é privilegiar a fluidez das narrativas e a transversalidade nas relações, sendo compreensível que novos gêneros, isto é, novas formas de agir por meio da linguagem sejam criados para o contexto virtual, uma linguagem própria da internet.
A comunicação humana no ciberespaço gera a sociabilidade, um processo dinâmico, onde cada sujeito que se relaciona encontra-se, momentaneamente, na mesma realidade e agem de maneira simultânea e interativa. Desta forma, há a necessidade de uma ordem ou regras para que a comunicação interpessoal possa ocorrer sem ruídos e de forma clara. São esses agentes da comunicação que irão valorar o repertório de mensagens enviadas um ao o outro, cada sujeito utilizando a sua dinâmica interna de experiências, valores e atitudes, para filtrar e dar sentido as mensagens recebidas, e conseqüentemente, responde-las de forma sociável. O espaço virtual, acessado pelas novas tecnologias de comunicação, é apenas o meio das relações interpessoais. Esse meio virtual, que faz parte de um conjunto de categorias específicas do mundo das comunicações, ou melhor, os meios de comunicação, que segundo McLuhan (1971) são extensões do homem e foram inventados para multiplicar a força e o alcance da capacidade humana de emitir mensagens.
Bordenave e Pereira (1985:186), apresentam uma síntese de teorização da comunicação, que consiste essencialmente de um processo de seleção e combinação, argumentando que as pessoas que entram na comunicação têm em um momento dado vários repertórios, que são as intenções e os objetivos, as experiências (significados), os signos e códigos, e os meios e tratamentos. Esta gama de repertórios, implícitos no processo de comunicação, é constituída de valores humanos gerados e desenvolvidos no âmbito sociocultural da realidade concreta.
“É no anonimato do “lugar virtual” que se experimenta solitariamente uma nova sociabilidade. O viajante pode caminhar por diversas infovias até encontrar o grupo ou tribo com que mais se assemelha, ou informações. Ao encontrar sua tribo, o indivíduo fixa-se neste endereço eletrônico e passa a experienciar e compartilhar de um lugar simbólico e marcado por relações de pertencimento de caráter ideológico, afetivo, sexual ou racial” (Silva, 2007).
É nesse contexto que a ética e a moral assumem um papel extremamente relevante diante das relações travadas no ciberespaço, pela capacidade de formar a alteridade em cada sujeito. Todos os inseridos no espaço virtual recebem a sua chave eletrônica, o passaporte para World Wide Web, ao realizar seu primeiro cadastro de e-mail. A identidade no mundo virtual não surge do nada, é uma extensão do que somos na realidade concreta, com nossos valores, atitudes e desejos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando que os valores éticos e morais são norteados pelos fundamentos derivados das próprias relações humanas, com suas respectivas individualidades, e que devem ser respeitadas, é importante destacar que mesmo não havendo detalhamento de normativo legal, que interfira, discipline e estabeleça um comportamento “padronizado”, os próprios fundamentos da moralidade implícita aos comportamentos humanos, vêm autodisciplinar o conjunto dos valores éticos e morais que devem prevalecer também nas relações do ciberespaço. Não se pode esquecer das características inerentes as individualidades dos sujeitos, sob pena de se estabelecer padrões em descompasso com a própria subjetividade humana. Assim, tendo presente os aspectos vinculados a alteridade, ao senso comum e aos padrões universais de eticidade, podendo experimentar a concepção de novos paradigmas éticos e morais, sempre com o cuidado de ponderar um equilíbrio entre as bases tradicionais e seus valores, evitando-se com isso a precarização de valores que possam pretender se instalarem em novos padrões de relações interpessoais, sobretudo no ciberespaço.
Fontes
BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’água, 1991.BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.BORDENAVE, Juan Díaz, PEREIRA, Adair Martins. Estratégias de Ensino-Aprendizagem. Petrópolis: Vozes, 1985.CAMPOS, Dinah Martins de Souza. Psicologia e desenvolvimento humano. Petrópolis: Vozes, 1997.COSTA, José Wilson da, OLIVEIRA, Mª Auxiliadora Monteiro. (Orgs). Novas linguagens e novas tecnologias: educação e sociabilidade. Petrópolis: Vozes, 2004.GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. São Paulo: Autores Associados, 2001.HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro dom pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: 34, 1999.MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Rio de janeiro: Cultrix, 1971.MONDIN, Battista. O homem: quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. São Paulo: Paulus, 1980.SANTOS, Hermílio. Alteridade, decepção e estigma no ciberespaço: desdobramento da interação social mediada. Revista FAMECOS. Porto Alegre. Nº 26. Quadrimestral, Abril, 2005.
SILVA Carlos Alberto F. da. A dimensão socioespacial do ciberespaço: uma nota. www.educacaopublica.rj.gov.br. Visitado em: 10/09/2007.
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